quinta-feira, 19 de março de 2009

O Tarado do Pé

Subo as escadas, sou breve com o cobrador. Minha bolsa tranca na roleta, busco com os olhos um lugar pra sentar e nada: eu sou a única de pé. A exposição do corredor... Parece que reconheço alguém nos bancos. Rebobino o trajeto que o olho fez e lá estava ele, o Tarado do Pé. Não, não hoje! Ele rende muitas anedotas e contos, no meu bairro, onde é conhecido por todos por pagar menininhas e encostar a boca em seus pés. Comovente na sua tentativa de se passar por alguém ordinário, ele sempre aparece assim, disfarçando o olhar arregalado e faminto por de trás de um jornal aberto que bem poderia estar de cabeça para baixo sem que ele percebesse. Não, não hoje, penso. O Tarado aqui e eu com essa rasteirinha medonha, esse pé áspero e com veias dilatadas no verão de asfalto em Porto Alegre; nada justo! Torço para que ele não note o descuido das minhas unhas. Imagina se não, ele está é com aquele olhar em transe em direção aos meus pés, nem pisca e me sinto pelada do tornozelo pra baixo, ele bota vergonha no meu pé. Esse nojento deve se controlar muito pra não cair de joelhos bem aqui. Queria vê-lo abocanhando os meus dedos sujos, passando a língua enrijecida de saliva quente e ansiosa por entre eles. Garanto que se eu mandasse, o faria. É um trapo humano, um escravo de pé. Num relance, iludida, eu penso que tenho o pobre nas minhas mãos, mas isso é só metáfora, e ele é da metonímia. Quem tem quem, logo se revela, e o jogo se realinha. Fico desconsertada, tento relaxar colocando o peso do quadril numa das pernas e minhas formas se desajeitam, tamanha falta de espontaneidade, meu corpo foi roubado de toda ela por esse vira-lata; é insustentável, ele cada vez mais excitado e indiscreto. Penso em como me livrar daquilo, mudar o foco e, como medida intuitiva e contrafóbica, me ocorre de encarar os pés do Tarado do Pé. Fixo o olho nos seus sapatos e espero paciente pra ver o que acontece. De início, não desvio nem pra conferir a sua reação, não é preciso. Agora, ele se desmonta. Fecha e abre o jornal numa disritmia de dar dó, o olho procura algum porto e em nada pousa, franze a testa porque desconfortável sob a sua pele. Não pára de se mexer no banco, cruza e descruza as pernas, pede um socorro mudo, quase posso escutá-lo suplicando pra que eu pare com aquilo; me regorjizo vitoriosa pela manobra: ele finalmente não suporta, e vaga um lugar pra sentar.

9 comentários:

alice disse...

hilário!!!!
épico!!!!!
isso devia ser publicado num livro de ocntos porto alegrenses!!
dá-lhe!!!!
o terrível tarado do pé!

pedro disse...

isso é verdade?! sugiro comprar pantufas grandes, em forma de coelho ou pato, estrumpfe aceitável, e dar assim início ao estudo comportamental do Tarado do Pé.

Numa onda menos "tarádica" mas em certa forma pedonal: em Lisboa há um senhor já velhinho que costuma parar pelo centro da cidade, o Senhor do Adeus. Na verdade é o Sr. Joao, mas poucos sabem. Basicamente passa o dia ao lado de um semáforo, dizendo adeus aos carros. Muitos lisboetas já sabem e retribuem o gesto. Já falei com ele várias vezes quando atravessava a avenida, e ele gosta da atencao, mas nunca pára realmente de dizer adeus aos carros enquanto conversa. É re educado e veste-se bem, e mostra sempre um corte de cabelo cuidado. Corre o boato de que até tem dinheiro, que provém da heranca dos pais e irma, que supostamente terao falecido num acidente automovel. Talvez daí se explique o seu comportamento.

Mas esse do pé há que fazer foto! jejeje

Donnassolo Beschi disse...

sim, é verdade, tudo, menos a última linha. fiquei muito comovida com o desconforto generalizado do tarado do pé, parei antes dele se levantar. mas Peu mané! temos também um Sr. Adeus, fica na esquina da ramiro com a ipiranga, chegando em Porto alegre, lhes apresento.

pedro disse...

jajajaja e tiro uma foto com o sr adeus do Brasil para regalar ao sr adeus portuga! que risa jajaja

Unknown disse...

esse tarado do pé realmente existe?
se sim, será esse o mesmo que eu conheço? um freqüentador assíduo das casas noturnas da independência?

rezo pra que seja.
shaioehoishaoe

Donnassolo Beschi disse...

sim, realmente existe. te conheço, leo?

Unknown disse...

é provável que de vista. mas com certeza não tem nada a ver com o blog. entrei aqui por acaso. muito bons textos, por sinal. :D
(léo tietboehl, prazer.)

Fernando Ungaretti disse...

E alguma vez tu se entregou ao fetiche dele?

Donnassolo Beschi disse...

não te conheço...