domingo, 26 de setembro de 2010

The Doors

Quando se abusa, quando se usa; as portas da percepção* se abrem nos estados alterados de consciência e experenciar o mundo de uma maneira muito melhor que a recorrente, seduz-nos muito. Ao ponto de algumas pessoas optarem por viver mais tempo nessa promessa de melhores relações com coisas e pessoas do que na vida de maior lógica organizada.

As portas da percepção se abrem e nos levam a próximas portas se soubermos passar por aquela sala inebriante, vertiginosa e fantástica. Quando conseguimos transpor e resgatar a potência dessa sala para momentos de química existencial regular (estados não induzidos de consciência), então a substância psicoativa cumpriu um papel que, para nós, parece interessante: nos fez experimentar algo novo, algo que produziu diferença de nós mesmos, algo que carregamos para a nossa vida. Nossa vida! Há de se lembrar dela, senão a perdemos na busca da primeira visita à sala inebriante, vertiginosa e fantástica.

*As Portas da Percepção, de Adous Huxley; inspiração para o nome da banda The Doors.

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Não parece fazer juz à complexidade das explicações dizer que nunca se sabe quem está ou não predisposto a aniquilar seu repertório de prazer e se hipnotizar doentiamente pela substância. Digo, não pelo fato de nunca sabermos sobre como as pessoas vão se comportar, digo por essa noção de "predisposição". Predisposição foi um nome eleito para dar conta, provisoriamente, da injunção estrato orgânico/estrato experencial, mas o termo ainda nos remete a uma força causal. Não que ela não se manifeste de fato, mas ela predomina no sabor de "predisposição". Então, há de se inventar ou resgatar de algum território dos signos e significados outro termo, outra palavra pra dizer de uma dupla manifestação que interaja nas suas dimensões: carne e experiência. Predisposição, probabilidade, tendência: signos que nos dizem do nosso desejo de prever e controlar virtualidades. Necessário talvez à sobrevivência, limitador de fato da consciência.




segunda-feira, 20 de setembro de 2010

continua...

Eu chegava, sentava no sofá sombrio, e alguém ia chamar a Fernanda, que sempre demorava; provavelmente levando o tempo de ser convencida a não faltar com a educação, de portanto descer e me receber, em plenos treze, mesmo não disposta a brincar com a vizinha de seis. Enquanto esperava no sofá, eu sentia o cheiro doce e proibido do catchup nas torradas que davam para o gato comer. Minha mãe nunca comprava catchup - era, portanto, meu objeto de desejo - o que me fazia achar um desbunde bizarro o gato merecer tamanho mimo. Eu amava aquele cheiro e, pensando agora, sou inclinada a acreditar que ia àquela casa por solidão e por desejo de torrada de gato com catchup. Um dia, sentadinha e, ignorando toda e qualquer insanidade infantil que já me habitava, levantei do sofá, conferi a ausência de outros da casa, me dirigi à tigela e pequei satisfeita.

domingo, 5 de setembro de 2010

Aconteceu IV

A casa era grande, eu tinha seis anos e nenhum irmão. Minha única companhia de brincadeiras naquele bairro distante e arrastado era a vizinha da frente. Fernanda, 13 anos, ruiva e estranha. Morava com os avós, nem eu nem ela entendíamos como a mãe a havia deixado lá, então nunca falamos sobre o assunto.
A regra era clara: como ela era descomunalmente mais velha do que eu, ela ditava a brincadeira e eu acatava. A casa era enorme (pra uma estatura de seis anos), tinha um sótão, um galinheiro, hortências excessivas rente ao muro baixo, um caldeirão de ferro nos fundos, um toca-discos verde-limão para moças virgens, tapeçarias na parede, móveis em veludo bordô, um avó com olho de vidro e boina, cheiro de naftalina com torradas de catchup e barulho de últimas louças do almoço sendo lavadas.
Parecia que ninguém gostava quando eu - criança magrela e inconveniente - chegava lá, nem os dois avós, nem a Fernanda, mas eu não me importava muito, não gostava deles também. Sabíamos que a Fernanda precisaria da piscina no verão, e eu só precisava descobrir um pouco mais daquela casa de mistério, principalmente daquele sótão.
Continua...