terça-feira, 28 de abril de 2009

O Trem das Onze

O que eu vou dizer agora pode romper com alguns imaginários de pureza e inocência, é sempre bom preparar. Tenho uma revelação a fazer aos que ainda não se deram por conta. Ninguém me convence do contrário: o rapaz filho único que deve pegar o Trem das Onze é, na verdade, um típico homem casado do início dos anos 60 - que perdeu o bonde da liberação sexual e recorre às donzelas enganáveis - cujo sopro de vida é frequentar a casa da boneca do outro lado da cidade. Sabe o que passa? Prefiro acreditar que ele é um cavalheiro até nas mentiras do adultério do que a versão "tenho de voltar porque mamãe me espera antes da meia-noite, sou um pastel". Imagino ele saindo pela porta, descendo devagar as escadas, como que se controlando pra não sair em saltos pelos degraus, a comemorar mais uma pequena; afinal, deve manter certa melancolia na despedida. Já na calçada, ele se viraria e a prenderia com a mais profunda ternura no olhar grave; vestiria o chapéu e seguiria até a estação simulando desolação. Mal percebe ele o andar ganhando peso na medida em que a sua aventura fica para os lados da zona sul, fazendo questão de diluir as sensações, de maneira a não perceber o exato daquelas vidas, é melhor assim. Chegando o Trem das Onze, ele já teria esquecido.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Ia, gênio.

Vou até à cozinha pra bisbilhotar o que faz a Ia, vai que consigo uma prévia do que vai ter de almoço com uma beliscada paparazzo. Não encontro nada de comer e me sirvo de um suco ainda morno:

_ Ué, Ia, esse suco de abacaxi... tem gosto de suco de abacaxi na caixinha, daqueles prontos.
_ É, eu fiz.
_ Como que ficou com gosto de suco de abacaxi pronto?
_ Fervi a casca.
_ Como ferveu a casca?
_ Fervendo, ué.
_ Com água?
_ Sim, né, guria!
_ Mas assim, a casca, a água e isso?
_ Sim, descasquei o abacaxi e botei a casca pra ferver, é assim que eles fazem: aproveitam a casca e usam a fruta pra fazer aquelas compotas em lata.
_ Bah, Ia...
_ É, eles não são bobos, minha filha, nós é que somos.

domingo, 19 de abril de 2009

Apocalypto

Passem um creme, reclinem a poltrona, liguem o ar-condicionado. Tragam o laptop pra perto, caso alguém chame pelo msn; peçam uma pizza e assistam ao Apocalypto, dirigido pelo Mel Gibson. Bom curto-circuito cultural e cuidado com o choque.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Diagramas

Eu gosto de Porto Alegre. Ou eu gosto de saber dos caminhos de Porto Alegre?
Gosto de saber que se, da Benjamin, pego o viaduto à direita, vou dar na Carlos Gomes. E que a Riachuelo, sendo contra-mão, vai desembocar na Borges para que se acesse a Demétrio Ribeiro pela Fernando Machado. Gosto de realizar e descobrir a lógica Porto Alegre. Gosto de entender, no seu quase mapa-móvel, o sentido dos fluxos, que sempre estiveram ali, mas que até hoje continuam se revelando óbvios e incríveis, tal qual a explicação de um filme bom ao final: como se a Wenceslau Escobar, de repente, tivesse tudo a ver com a Santana. Gosto mesmo é de ver que, por pouco, quase entendo toda ela.

Pela Mostardeiro e Quintino, seu moço. Depois Casemiro de Abreu e Vicente, a Oswaldo a essa hora não é legal.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Riveira, frente e fundos.

E mesmo se tratando de verão dos infernos, o vento fresco na minha janela-à-noite não falha. Ele vem do morro. Do outro morro. Entre nós, um vale de buzinas, corredores de ônibus e funilarias. O vento fora de tempo, e sempre, parece que não deixa esquecer a cidade, que me diz: no outro morro há gatos, engendumbres, pátios divididos, os meus perigos e o espontâneo. Eu, do outro lado, me deleito quando o portão realmente abre com o meu controle; subo, deito, tremo, respeito o espaço entre-céu e me tapo esperando.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Vida em trilhos
O plano são os planos
O estável como meta
E tu arrastado em anos

Te vejo tão mais velho
Te vejo tão sem cor
Monotonia consentida
De um iluso pecador

domingo, 5 de abril de 2009

Efeito Kundera

Irena se reprova por seu gesto de mau gosto, com sua caixa de bordeaux; por sua estupidez ao trazer à tona tudo o que as separa: sua longa ausência do país, seus hábitos de estrangeira, sua desenvoltura. Reprova-se ainda mais porque atribui a esse encontro uma grande importância: quer afinal avaliar se pode viver aqui, sentir-se em casa, ter amigos. É por isso que nao quer se sentir humilhada com essa falta de tato, está mesmo disposta a ver nela uma simpática franqueza; aliás, a cerveja a que suas convidadas manifestaram sua fidelidade não é a santa bebida da sinceridade? o filtro que dissipa toda hipocrisia, toda a comédia das boas maneiras? que incita os admiradores a apenas urinar com toda a inocência, a engordar com toda a candura? Realmente as mulheres à sua volta são calorosamente gordas, não param de falar, transbordam de bons conselhos e elogiam Gustaf, cuja existência todas conhecem.
A Ignorância
Minhas sinceras desculpas àqueles com os quais não dividi uma embriaguez de cevada.