domingo, 29 de março de 2009

Guardiões Inanimados - Casa velha

Confabulo hipóteses
Desenhadas no que vejo
Nas flores da tua bolsa
Nas escadas do meu fecho

O tempo de um bordado
A razão de uma costura
Continua, continua

Um amigo ao telefone
Um recado a ser entregue
Dispenso os bilhetes
A memória posta em cheque


Relembro o que dizias
Cada pausa, tudo enfim
Ao rever o que eu via
Mancha preta no marfim

Eles sabem com afeto
Um tanto do que senti
Guardiões inanimados
Eles têm o que eu vivi

segunda-feira, 23 de março de 2009

Ainda encasquetada com as liberdades. Então tio Calligaris pede licença pra dar uma mãozinha. Fala mestre!


"Milk", o preço da liberdade

por Contardo Calligaris publicado em 1/3/2009.

Para continuarmos livres, é preciso defender a liberdade do vizinho como se fosse a nossaASSISTINDO a "Milk - A Voz da Igualdade", de Gus Van Sant (extraordinário Sean Penn no papel de Harvey Milk), lembrei-me de um e-mail que recebi em abril de 2008. Era uma circular de http://www.boxturtlebulletin.com/ (um site sobre os direitos das minorias sexuais), que "comemorava" os 55 anos de um evento sinistro: em 1953, Dwight Eisenhower, presidente dos EUA, assinou um decreto pelo qual seriam despedidos todos os funcionários federais que fossem culpados de "perversão sexual". Essa lei permaneceu em vigor durante mais de 20 anos: milhares de americanos perderam seus empregos por causa de sua orientação sexual.
Fato frequentemente esquecido (um pouco como foi esquecida, durante décadas, a perseguição dos homossexuais pelo nazismo), nos anos 50, no discurso do senador McCarthy, a caça às bruxas "comunistas" se confundia com a caça às bruxas homossexuais. Por exemplo, uma carta do secretário nacional do Partido Republicano (citada na circular) dizia: "Talvez tão perigosos quanto os comunistas propriamente ditos são os pervertidos escusos que infiltraram nosso governo nos últimos anos". Essa não era uma posição extrema: na época, a revista "Time" defendeu o projeto de despedir todos os homossexuais que trabalhassem para o governo federal.É nesse clima que, nos anos 70, em San Francisco, Milk se tornou o primeiro homossexual assumido a ser eleito para um cargo público.
Poderia escrever sobre as razões que, quase invariavelmente, levam alguém a querer esmagar a liberdade de seus semelhantes. O segredo (de polichinelo) é que muitos preferem odiar nos outros alguma coisa que eles não querem reconhecer e odiar neles mesmos. E poderia contar a história de Roy Cohn, braço direito de McCarthy, que morreu, em 1984, odiando e escondendo sua homossexualidade e gritando ao mundo que a causa de sua morte não era a Aids (ele foi imortalizado por Al Pacino na peça e no filme "Anjos na América", de Tony Kushner).
Mas, depois de assistir a "Milk", estou a fim de festejar o caminho percorrido em apenas meio século: o mundo é, hoje, um lugar mais habitável do que 50 anos atrás. Aconteceu graças a milhares de Harvey Milks e a milhões de outros que não precisaram ser nem homossexuais nem comunistas nem coisa que valesse: eles apenas descobriram que só é possível proteger a liberdade da gente se entendermos que, para isso, é necessário defender a liberdade de nosso vizinho como se fosse a nossa. Nos anos 70, quase decorei a carta aberta que James Baldwin (escritor, negro e homossexual) endereçou a Angela Davis (jovem filósofa, negra e militante), quando ela estava sendo processada por um assassinato que não cometera, e o risco era grande que o processo acabasse em uma condenação "exemplar". Baldwin lembrava as diferenças de história, engajamento e pensamento entre ele e Davis, para concluir: "Devemos lutar pela tua vida como se fosse a nossa - ela é a nossa, aliás - e obstruir com nossos corpos o corredor que leva à câmara de gás. Porque, se eles te pegarem de manhã, voltarão para nós naquela mesma noite".
Os direitos fundamentais não são direitos de grupo, eles valem para cada indivíduo singularmente, um a um. É óbvio que grupos particulares (constituídos por raça, orientação sexual, ideologia, etnia etc.) podem e devem militar coletivamente pelos direitos de seus membros, mas, em uma sociedade de indivíduos, a liberdade de cada um, por "diferente" que ele seja, é condição da liberdade de todos. Por quê? Simples: se meu vizinho, sem violar as leis básicas da cidade, for impedido de ter a vida concreta que ele quer, então meu jeito de viver poderá ser tolerado ou até permitido, mas ele não será nunca mais propriamente meu direito.
"Milk" é um filme sobre um momento crucial na história das liberdades, mas não é um filme "arqueológico". A gente sai do cinema com a sensação renovada de que a militância libertária ainda é a grande exigência do dia. Ótimo assim.Um amigo me disse recentemente que eu dou uma importância excessiva à contracultura dos anos 60/70. Acho, de fato, que ela foi a única revolução do século 20 que deu certo e, ao dar certo, melhorou a vida concreta de muitos, se não de todos. Acho também que suas conquistas só se mantêm pelo esforço cotidiano de muitos. Afinal (quem viu o filme entenderá), surge uma Anita Bryant a cada dia.

sábado, 21 de março de 2009

Mastigar gelo.

Acabo de voltar da kimik, lugar tipicamente frequentado por josias (http://www.youtube.com/watch?v=6qc3W6Bh-f4), então, me diverti horrores. Mas lá pelas tantas, comecei a mastigar o gelo da minha vodka com energético e me senti profundamente culpado. Recorri a dois amigos balzaquianos no recinto e, seguro de que encontraria testemunhos cúmplices, quis confirmar se também eles, com a idade, temiam mastigar gelo em função do desgaste dos dentes - certamente não tão em forma como em nossos 15. Reagiram com cara de estranheza à minha pergunta, franziram a testa e balançaram a cabeça negativamente se entreolhando e rindo. Nada mais velho do que se sentir um velho... e solitário. Segui o baile com os dois dedinhos fura-bolo em punho, fingindo ser o jovem que era.

quinta-feira, 19 de março de 2009

O Tarado do Pé

Subo as escadas, sou breve com o cobrador. Minha bolsa tranca na roleta, busco com os olhos um lugar pra sentar e nada: eu sou a única de pé. A exposição do corredor... Parece que reconheço alguém nos bancos. Rebobino o trajeto que o olho fez e lá estava ele, o Tarado do Pé. Não, não hoje! Ele rende muitas anedotas e contos, no meu bairro, onde é conhecido por todos por pagar menininhas e encostar a boca em seus pés. Comovente na sua tentativa de se passar por alguém ordinário, ele sempre aparece assim, disfarçando o olhar arregalado e faminto por de trás de um jornal aberto que bem poderia estar de cabeça para baixo sem que ele percebesse. Não, não hoje, penso. O Tarado aqui e eu com essa rasteirinha medonha, esse pé áspero e com veias dilatadas no verão de asfalto em Porto Alegre; nada justo! Torço para que ele não note o descuido das minhas unhas. Imagina se não, ele está é com aquele olhar em transe em direção aos meus pés, nem pisca e me sinto pelada do tornozelo pra baixo, ele bota vergonha no meu pé. Esse nojento deve se controlar muito pra não cair de joelhos bem aqui. Queria vê-lo abocanhando os meus dedos sujos, passando a língua enrijecida de saliva quente e ansiosa por entre eles. Garanto que se eu mandasse, o faria. É um trapo humano, um escravo de pé. Num relance, iludida, eu penso que tenho o pobre nas minhas mãos, mas isso é só metáfora, e ele é da metonímia. Quem tem quem, logo se revela, e o jogo se realinha. Fico desconsertada, tento relaxar colocando o peso do quadril numa das pernas e minhas formas se desajeitam, tamanha falta de espontaneidade, meu corpo foi roubado de toda ela por esse vira-lata; é insustentável, ele cada vez mais excitado e indiscreto. Penso em como me livrar daquilo, mudar o foco e, como medida intuitiva e contrafóbica, me ocorre de encarar os pés do Tarado do Pé. Fixo o olho nos seus sapatos e espero paciente pra ver o que acontece. De início, não desvio nem pra conferir a sua reação, não é preciso. Agora, ele se desmonta. Fecha e abre o jornal numa disritmia de dar dó, o olho procura algum porto e em nada pousa, franze a testa porque desconfortável sob a sua pele. Não pára de se mexer no banco, cruza e descruza as pernas, pede um socorro mudo, quase posso escutá-lo suplicando pra que eu pare com aquilo; me regorjizo vitoriosa pela manobra: ele finalmente não suporta, e vaga um lugar pra sentar.

Recomendo:

http://uigretta.blogspot.com/

segunda-feira, 16 de março de 2009

O mar a beber. Drogas II

O mar a beber. O mar com sede quer tudo engolir e, fanfarrão insistente que é, não pára de avançar. Embriagado de si, depois, de ressaca, se joga na areia; também ele tem temperamento, só que, ao contrário de muitos, fica de bom humor de manhã cedo, depois da noite virar - ainda que seguido de um belo trago - muito provavelmente por continuar a tragar. O mar a beber, vontade de se ilimitar, insaciável o mar quando se põe a beber.

Drogas I

Novembro de 2008. No telão da imensa festa eletrônica em Buenos Aires, não estava escrito nosso velho conhecido

"Diga não às drogas!"

Tava mais ou menos assim:

"No te percas, tu sabes el tu límite!"

sexta-feira, 13 de março de 2009

Duas fatias de pão preto
Tabasco
Sakura
Curry seco

Não me interessa amortecido

Tento ardido, quem sabe azedo
Que arranhe a boca
Abacaxi no meio

Podia amor ter sido

Enfim
De satisfeito cheio

quarta-feira, 11 de março de 2009

Juventude Transviada

Não quero me alongar nas linhas, existem textos o suficiente para o tema. A notícia recém deu, eu tô fervilhando, então perdoem o linguajar chulo chulepento, mas eu fico puta com essas manifestações estudantis anti-cotas sociais. Porra, esse pessoal que devia tá num momento idealista (um momento que seja!) das suas vidas e tão aí, indo pra rua lutar pelo seu! Pelo seu digníssimo rabo na cadeira da Universidade Pública. O “coletivo” pelo mérito, que casamento de mau gosto.

Desconfio da sensatez de quem de cara se posicionou convicta e firmemente em relação às cotas raciais. Entendo perfeitamente o argumento de que elas feririam o princípio de igualdade das raças; as cotas raciais – pra mim - não descem redondo. POR OUTRO LADO... acho muito engraçado, quando quem defende apenas as cotas sociais (excluindo as raciais), alega que essas reparariam uma diferença de oportunidades. Ponto. Quem são essas pessoas pra dizerem que não há diferença de oportunidades devido à cor? Brancos?

Acho urgente saber o que os negros pensam sobre isso (ainda que esse levantamento não comporte a complexidade dos argumentos, muito mais importantes do que meros sim/não), acho que quem sente na pele o preconceito são os negros. Quer evidência mais cabal de que há sim uma diferença de tratamento do que o fato de uma galera negra não se declarar negra? O resto é filosofia – muito útil – mas não pele. Gostaria de saber dos negros: as cotas são uma política afirmativa? As cotas afirmam a raça negra?

Marcha pela Paz, Marcha da Família com Deus pela Liberdade... Enfim, além de ter que ficar puta comigo por não fazer número na rua apoiando as cotas sociais, eu tenho que ficar puta com esses bunda-mole desses estudantes que ocupam a praça pública (liberdade dos antigos) por uma luta individualista (liberdade dos modernos), bizarro! O hibridismo é bem-vindo, mas, das análises combinatórias possíveis, essa aí tá toscona demais.

Pergunta do Dia

Como contar à sua analista sobre um sonho em que ela está sob a pele de uma açogueira saguinária, que tira filezinhos das pessoas, do tipo bem fininhos, igual a carpaccio?

domingo, 8 de março de 2009

A pessoa espera.

Os acontecimentos nem sempre se distribuem parelho pelas épocas. Às vezes se amontoam, às vezes simplesmente não acontecem, nos fazendo esperar por qualquer coisa, na linha, quase com musiquinha de elevador. Não foi o caso dessa semana, que deixou os meus pacatos últimos dias com inveja de tanto tumulto e movimento.


Eu e a Garota I – Quinta-feira
Lembro da primeira vez em que nos falamos, foi por telefone. Por ali nós duas sentimos algo fácil, um contentamento do outro lado da linha, uma vontade de conhecer mais da outra. Pouco depois nos encontramos e achei precipitado quando, já na casa dela, ela me surpreendeu dizendo que não queria mais procurar ninguém, que eu era a pessoa. Eu sentia poder dizer o mesmo naquele exato instante. Mas não disse. Prudente, falei que a procuraria na segunda. Que eu a procuraria. E na segunda.

Eu e a Garota II – Sexta-feira
Mal nos conhecíamos e ela já me enredava em algo mal resolvido. Quando disse que queria conversar comigo, aquele tom me arrepiou a espinha. Ela disse ter alguém, que não tinham dado certo e que pra ela estava acabado. Pergunto se a pessoa estava a par disso, ela me respondeu que mais ou menos, mas pra eu ficar tranqüila, que era eu quem ela queria e que, naquele final de semana mesmo, ela iria terminar tudo e então me ligaria. Aguardo, então, mas, por favor, não me procura enquanto isso não estiver resolvido, eu disse. Não me ligou até agora.

Eu e meu amigo Oko – Sábado
Estamos nos debruçando sobre tacos caseiros - carne seca, molho apimentado, verduras e feijão mexido saltando para os lados - quando ele recebe uma mensagem do atual rolo: não queria dizer por mensagem, mas é que não encontrei outro jeito. Preciso te dizer somente que tenho medo de te perder, que és alguém muito especial e que eu quero que tu te abras comigo, converses, quero te ouvir. Sei que combinamos de não nos vermos ou nos falarmos por um tempo, mas não consigo, quero te contar das pequenas coisas, me liga. Fiquei tocada com a angústia da menina e disse que se ele não queria discutir a relação àquela hora da noite, que ao menos enviasse uma mensagem dizendo que ligaria no dia seguinte, afinal, enquanto comíamos tacos, ela certamente comia o telefone com os olhos, esperando dele um barulhinho de chamada. Eis que, terminado meu sermão sobre paixão e ética, também eu recebo uma mensagem da Garota I, que não conseguia esperar pela minha ligação na segunda-feira: oi, sou eu, me liga. Preciso muito falar contigo. Oko olha pra mim com ar de deboche, como quem diz, hmm, também tu, eternamente responsável por aquilo que cativas?

E assim estou eu, nessa trama de espera, ansiedade, rompimentos e possíveis relações. Nunca imaginei que procurar apartamento pra dividir o aluguel envolvesse conquistas, cuidados e expectativas desse jeito. Ai, apartamentos e apartamores... Quanta pressa em não perder a pessoa certa. Será que tem como rimar pressa com pessoa certa?

quinta-feira, 5 de março de 2009

Salada de Mamão Verde (Thai)

Em restaurantes ou em estruturas de alumínio montadas nas calçadas, esse é um dos pratos mais servidos na Tailândia. O Cau pegou a receita na última ida dele pra lá e, desde então, não consigo parar de fazer esse prato. No pilão, a gente esmaga:

Aquela pimentinha-pimentão vermelha já cortada em rodelas e com semente. Dependendo do teu limiar pra pimenta, coloca uma ou uma e meia.
Esmaga junto com ela, depois, o amendoim torradinho, sem casca, claro; bota uns quantos.
Chama pra suruba do pilão também os tomatinhos-cereja cortados pela metade, bota uns sete.

Enquanto isso, uma pessoa vai ralando um mamão verde. Verde, isso mesmo, no super, pega o verde. Descasca e pega aquele aparelhinho, geralmente laranja, e faz spaghetti, fiozinhos de mamão. Tem também o processador, que é mais fácil. Faz o mesmo com uma cenoura. Tem que ter bem mais mamão do que cenoura. Bom, daí, nessa macarronada, tu coloca

uma colher de sopa rasa de açúcar,
sakura (molho shoyo) não light (dois círculos e meio grandes e rápidos),
suco de meio limão bem esmagado, um dentinho de alho cortadinho bem miúdo e, se tiver,
bota um pouco de gengibre – tb miúdo - pra dar um toque, não pra dominar o prato.

Acrescenta então aquela maçaroca de amendoim, pimenta e tomatinhos esmigalhada pelo pilão nessa macarronada temperada e refrescante. Mistura tudo e serve em cumbucas. Sério, um vento frio e picante invade a boca, um sabor adocicado com tempero oriental atiça as papilas confusas. Viva a comida Thai, que ela se popularize! 'Papilas Confusas', se eu tivesse um restaurantezinho, levaria esse nome.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Andradas de Porto Alegre

Desamarrados e errantes, os calçados retirantes sentem vento rasteiro e cortante, tão distantes e ingênuos, invisíveis aos ilustres, aos lustrados, só vão depressa com um sorriso rasgado de dedo a dedo, sob o sol do dia frio, pela rua que leva à praia, andrando, andrando, igual a criança com pressa, temendo perder, no rio, o abano do sol, que começa...

segunda-feira, 2 de março de 2009

Épico

Torcer sem dó
Torcer sem zelo
É essa a saga
Da palavra tornozelo
Ainda mais se descuidados
Requebrarmos por demais
Ao ponto de
Bum!
Bum!
Fazer rufar as bundas
Nossas bundas andarilhas
Andando todas juntas
Guerrilheiras farroupilhas