quarta-feira, 1 de julho de 2009

Crack - Mas nem pensar?

Manoela trabalha numa Unidade Básica de Saúde na periferia de Porto Alegre e tem como irmão o Lourenço, que faz o terceiro ano do segundo grau e foi incumbido pela professora de fazer uma redação sobre o crack. Sabendo do trabalho da irmã, orgulhoso, mostrou o título pensado a ela: "Crack - nem pensar". Seja por malandragem, lavagem cerebral ou comodismo de Maurício - não importa -, o fato é que coincidentemente esse é o slogan da campanha enfática de nossa emissora local, a RBS, que remonta aos tempos de Claudia Ohana fazendo o papel da vagabunda cocaína, toda de branco, sedutora; descabelada, dissimulada, interesseira e de narizes em sangue jogada nos azulejos de um banheiro. Manoela percebeu que a epidemia do medo de pensar havia chegado à sua casa; sentou e conversou com o seu irmão. Ele foi pro quarto meditativo e depois de algum tempo, voltou mostrando o novo título: "Crack - Vamos pensar?" Manoela respira aliviada.

Engraçado esse boom do crack. Todo o alvoroço e a mobilização da imprensa surgiram justo quando o crack bateu à porta dos cidadãos de bem - leia-se os filhos do Bela Vista, Moinhos, Auxiliadora, Petrópolis. E antes? Por acaso não se acreditava que as famílias e jovens pobres estivessem passando por maus bocados?

Mas deixo disso que é coisa de ressentido, afinal, que racicínio mais causal cartesiano esse meu. Que coisa importa o que deflagrou esse movimento, se desse ou daquele bairro, o que importa são os efeitos rizomáticos que isso inevitavelmente toma, os respingos, a produção social sobre o tema que a campanha pode fazer repercurtir. Ora vejam só. Pra nossa surpresa o respingo imediato, do tipo jato mirado, foi a reinvindicação por leitos psiquiátricos, pela compra, claro, desses leitos.

Na página do SIMERS (Sindicato Médico do Rio Grande do Sul), pode-se encontrar a seguinte enquete sobre o crack: Por que o governo estadual não consegue ampliar leitos? a) Insiste em abrir vagas em hospitais gerais; b) Há desinteresse na área; Está interessado em manter o déficit zero. "Insiste em abrir vagas em hospitais gerais?" Aproveito e me faço de louco: onde mais seriam? Em manicômios? Assim, uma alternativa anticonstitucional, passando despudoradamente por cima da lei da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial?

Da mesma forma, quase que simultaneamente à campanha "Nem Pensar", e aproveitando a cultura do terror e do medo produzidos, a gestão da saúde mental de Porto Alegre - oportunamente - convida o grupo Mãe de Deus a se responsabilizar pela capacitação e pela contratação de recursos humanos para trabalhar nos Centros de Atenção Psicossocial para Álcool outras Drogas (CAPAS AD). Nem melhor, nem pior, mas todos sabem que o grupo Mãe de Deus, além de ser uma entidade privada ocupando compromissos públicos (mesmo com profissionais já concursados ansiando por assumi-los), se norteia pelo paradigma da tolerância zero; nem mesmo os profissionais podem fumar um cigarrinho no intervalo. Tu-do-bem, sem problemas, tudo de bom, inclusive os crucifixos nas paredes desses consultórios que estão atendendo o público de Porto Alegre em nome do SUS, mas o Ministério da Saúde já tem uma diretriz clara para a Política de Álcool e outras Drogas (http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/visualizar_texto.cfm?idtxt=24141&janela=1) que é a Redução de Danos - reduzida atualmente em Porto Alegre a vergonhosos nove redutores de danos...
Foi por esse motivo que o controle social (Conselho Municipal de Porto Alegre) não aprovou essa parceria e, novamente, de forma desrespeitosa, os gestores passaram por cima desse mecanismo legalmente reconhecido. Constituição pra quê mesmo? Vamos rasgar de uma vez? É isso, muito terror, pavor e medo a todos, assim fica mais fácil irmos acatando atuações que cuidem de nós, que pensem por nós.

3 comentários:

alice disse...

agora começo a entender mais coisas. brilhante texto.
ainda fica uma pergunta de curiosa: como é a abordagem, o trabalho com quem usa o crack? no que mais se empenha? o que é reduzir danos de uma droga que pode viciar na primeira tragada? ou isso é mito? como se faz, se vai pra maconha? ou é possível fumar menos crack?

perguntas que rondavam a minha cozinha no fim de semana. falei de ti e nos perguntamos sobre essas coisas...

beijos

Donnassolo Beschi disse...

pesquisas nos EUA: 10% dos usuários de maconha provavelmente vao usar cocaína, diferente dos usuários de cocaína que em sua maioria iniciaram pela maconha; sutil, mas importante diferença. reduzir danos é também abordar cidadãos que nao queiram explicitamente ou necessariamente ficar abstinentes, é uma aproximação em nome da saúde com autonomia, ou seja, reduzir danos com crack pode ser informar sobre os malefícios do uso do cano de pvc pra cachimbo (melhor os copinhos de água do demae que já vem com alumínio e tudo)pra quem sabe no futuro, quando aquela pessoa quiser repensar o seu uso, já saber onde buscar, se sentir autorizada a procurar/circular pelos serviços de saúde. vínculo é uma palavra-chave e ele pode começar com essas abordagens. nota importante: redução de danos não é oposto 'a abstinência, afinal, tem melhor redução de danos pra saúde que a abstinência...? reduzir danos é também envolver a pessoa atendida e suas expectativas no plano terapêutico, por isso, quanto mais ofertas de serviços, melhor. conheço gente que já parou com o crack com a ajuda da maconha, outros com cultos, outros com internações... diferentes terapêuticas tantas quantas forem os diferentes tipos de pessoas. quanto ao 'mas nem pensar?', pura retórica publicitária, não vamos exigir eficiência terapêutica da RBS que não é esse o papel dela. porém... se for realmente do interesse a diminuição do consumo de crack, a história mostra que campanhas alarmistas nunca atingiram a eficiência esperada. diferente das propagandas nos versos das caixas de cigarro que, junto com imagens indigestas, vem com conteúdo informativo. quanto 'a primeira tragada que vicia, realmente o poder do crack reside na velocidade com que chega ao cérebro e na velocidade do efeito, mas já conheci pessoas que fumaram algumas vezes e nao continuaram, assim como pessoas que fumam crack há 15 anos (e agora esto muito muito mal) e que por um tempo organizaram minimamente suas vidas (trabalharam, amaram...), algo que nao se sustentou.

Paula disse...

eu nunca tinha pensado em usar crack até essa campanha. daime ainda não!