Por que será que eu nunca consigo sair com batom vermelho em boca? Quantas vezes quando criança, quando adolescente e mesmo agora, eu não me postei diante do espelho, me olhei bem no olho, resgatei toda a memória genética do feminino e pensei: “hoje vou de boca vermelha”, como num ato de coragem e tesão. Eu tinha quatro anos em Jaguarão. Filha única, brincava muito sozinha com uma imaginação quase delirante: sempre peças, histórias inventadas, tramas amorosas e familiares – em geral, mamãe brigando com filhinha - feitas a partir do nada, do ar, de uma fralda de pano na cabeça que me transformava numa mulher cabeluda e poderosa. Distraída com uma dessas interpretações, houve um dia em que a tevê de imagem esverdeada estava ligada, e uma cena de novela me capturou por completo, nunca mais me saiu da cabeça. Era uma briga entre duas mulheres, batiam boca, se interrompiam a fala, daquelas disputas de poder que marcam, que dão desejo de matar. A outra estava em fúria e enxotava a mulher que já se dirigia à porta, mas esta, antes de sair, virou-se, jogando a cabeleira preta pra trás com um movimento brusco, mas certeiro: “Cuidando, hein! Cuidado porque eu sou uma mulher Perigosa!” Ela devia estar usando batom vermelho, era muito fodona, pontual, capaz de calar a boca de qualquer um; só uma boca vermelha nos anos oitenta tinha esse poder sobre as outras. Ela deixaria o apartamento sim, mas com a promessa de um retorno que com certeza amedrontou a rival. Acho que passei anos – tá certo, talvez fossem alguns meses daquele verão – diante do espelho, com a boca vemelha, repetindo: “Cuidado! Eu sou uma mulher perigosa, hein!” Sempre tive um batom vermelho na gaveta do banheiro (atualmente, tenho inclusive um na bolsa - esse tampouco realizado), o coloco uma vez a cada três semanas com a intenção de sair pra rua com ele, mas sempre acabo tirando com o papel higiênico. Nesse ritual, lamento a minha covardia, boto o papel no lixo e antes de sair pela porta, me encaro novamente no espelho. Ao invés de encontrar a superioridade inatingível e invicta das bocas vermelhas, me deparo com o ar borrado, recém pálido, mas inchado e exausto de lábio em ressaca, o que me parece um flagrante muito mais interessante do que o intocável: “Cuidado, hein! Cuidado porque já fui beijada!”
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
Sabotagem
A descoberta do Brasil se deu no ano de 2009. O “Forró de R$ 1,00” acontece todo domingo, no meio de uma rua com bares, ao lado de uma praça em Recife. A banda é teatral e sacana, de constranger qualquer um que se toma por malandro diante da implacável e bem dada backing vocal do grupo, sem-vergonha que só. Letras afiadas, som muito bom, só começam quando todos dão - bem gostoso - R$1,00 pro chapéu. Até que isso aconteça, eles improvisam e enrolam, abrindo o espaço para os que queiram recitar sua poesia. É nesse momento que sobem ao palco os doidos. Começam com versos absurdos e ruins; me constrangem, a mim e a todos, imagino. Aguardo a intervenção da banda pra que cortem o momento, retirem o microfone, façam qualquer coisa pra interromper aquela exposição por que estão passando os doidos da praça. Nada. Eles vão até o fim; olho à minha volta e a mais incomodada parece ser eu mesmo. O público reage descontraído, ri, acha ruim, acha nada, enfim, sabe-se lá. Começo a me dar conta do meu espanto sem cúmplices. E não param de chegar ao palco viajandões. Numa hora, o depoimento de uma recém saída da internação psiquiátrica, chapadona de remédio dizendo que tinham cortado ela no braço aqui, aqui e aqui: recebe as boas-vindas da banda pois foi a primeira que se levantou de uma mesa pra dançar, quando, há 3 anos, começou o “Forró de R$ 1,00” na rua. De um lado para o outro, um black power que dançava e ria sozinho, outro que recebia oxum; tinha também uma velha de 80 anos, magricela, musculosa, inteiraça, sedutora pra caralho, total domínio do rebolado e da cabeça que se lançava pra frente e pra trás a la rock&roll. E quando dei por mim, a praça e a rua estavam cheias de loucos, putas, bêbados, estudantes, turistas, elite metida a antropóloga, artistas, velhos, gurizada... era um povo que se desconhecia previamente e que, mesmo assim, dançou sem parar por umas cinco horas, fazendo quadrilha, dançando de par e ciranda – uma das danças circulares típicas de Pernambuco. Em meio a tudo aquilo, percebi o meu próprio senso tutelar, bem aquele que, em nome da proteção e da não exposição, confina, cria simulações, estimula a arte de louco pra louco. Achei aquilo incrível, flagar-me em plena desterritorialização conceptual. Sabotagem cultural! Pensei.
Maraca
Maraca é o nome que os índios dão àquela espécie de chocalho usado nos rituais de dança. Maraca significa coração, ou seja, não pode parar de ser tocado e então, o transe rítmico. É objeto querido, cada índio constrói o seu, e cada pedrinha dentro colocada representa um evento importante na vida do índio. Maraca, Maracanã, Maracatu. Por que raios, na escola, quando criança, eu aprendi a fazer somente trabalhinhos de impressionismo e não me ensinaram a confeccionar o meu próprio Maraca? Esse é só mais um fragmento que me diz da ignorância cultural que eu tenho do meu próprio território-Brasil desde a minha chegada na Bahia.
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