segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Mulherzinha - Batom Vermelho

Por que será que eu nunca consigo sair com batom vermelho em boca? Quantas vezes quando criança, quando adolescente e mesmo agora, eu não me postei diante do espelho, me olhei bem no olho, resgatei toda a memória genética do feminino e pensei: “hoje vou de boca vermelha”, como num ato de coragem e tesão. Eu tinha quatro anos em Jaguarão. Filha única, brincava muito sozinha com uma imaginação quase delirante: sempre peças, histórias inventadas, tramas amorosas e familiares – em geral, mamãe brigando com filhinha - feitas a partir do nada, do ar, de uma fralda de pano na cabeça que me transformava numa mulher cabeluda e poderosa. Distraída com uma dessas interpretações, houve um dia em que a tevê de imagem esverdeada estava ligada, e uma cena de novela me capturou por completo, nunca mais me saiu da cabeça. Era uma briga entre duas mulheres, batiam boca, se interrompiam a fala, daquelas disputas de poder que marcam, que dão desejo de matar. A outra estava em fúria e enxotava a mulher que já se dirigia à porta, mas esta, antes de sair, virou-se, jogando a cabeleira preta pra trás com um movimento brusco, mas certeiro: “Cuidando, hein! Cuidado porque eu sou uma mulher Perigosa!” Ela devia estar usando batom vermelho, era muito fodona, pontual, capaz de calar a boca de qualquer um; só uma boca vermelha nos anos oitenta tinha esse poder sobre as outras. Ela deixaria o apartamento sim, mas com a promessa de um retorno que com certeza amedrontou a rival. Acho que passei anos – tá certo, talvez fossem alguns meses daquele verão – diante do espelho, com a boca vemelha, repetindo: “Cuidado! Eu sou uma mulher perigosa, hein!” Sempre tive um batom vermelho na gaveta do banheiro (atualmente, tenho inclusive um na bolsa - esse tampouco realizado), o coloco uma vez a cada três semanas com a intenção de sair pra rua com ele, mas sempre acabo tirando com o papel higiênico. Nesse ritual, lamento a minha covardia, boto o papel no lixo e antes de sair pela porta, me encaro novamente no espelho. Ao invés de encontrar a superioridade inatingível e invicta das bocas vermelhas, me deparo com o ar borrado, recém pálido, mas inchado e exausto de lábio em ressaca, o que me parece um flagrante muito mais interessante do que o intocável: “Cuidado, hein! Cuidado porque já fui beijada!”